Em um mundo em que a corrente de informação circula ao ritmo de terabytes por segundo e quase tudo o que se quer saber está, para 1 bilhão de pessoas, a apenas um clique de distância, como explicar que a tragédia de Darfur seja invisível? O mundo ignora ou finge ignorar que Darfur, no Sudão, é cenário de uma guerra de extermínio contra uma população indefesa. O mesmo mundo que se apieda de um filhote de urso-polar abandonado pela mãe no zoológico de Berlim fecha os olhos para as centenas de milhares de crianças subnutridas dos 130 campos de refugiados de Darfur.
O mundo que está prestes a comemorar o Natal, festa que ultrapassou os limites do cristianismo para congraçar homens e mulheres de diferentes credos, esquece que em Darfur a noite de 24 de dezembro será apenas véspera de mais um dia em que crianças morrerão, homens serão executados e mulheres, estupradas. Vem sendo assim desde 2003, quando eclodiu o conflito entre o governo do ditador Omar al-Bashir e rebeldes dessa região do oeste sudanês. E também quando, armados pelo governo de Cartum, bandos de facínoras, a pretexto de combater revoltosos, intensificaram a matança indiscriminada de cidadãos que não pertenciam à sua etnia "árabe".
(...)De acordo com uma pesquisa divulgada na semana passada pelo Instituto para o Estudo de Conflitos Internacionais de Heidelberg, na Alemanha, os principais motivos de tensões no mundo, hoje, são os fatores ideológicos (teocracia contra estado secular, por exemplo) e o separatismo ou busca por autonomia regional – e tais não são os casos em Darfur. O que se tem ali é uma guerra que há muito perdeu qualquer propósito. O que se tem ali é uma matança selvagem, seja por meio de fuzilamentos sumários, seja por meio da fome imposta pelo isolamento. Paz, em Darfur, é um conceito demasiado abstrato, inalcançável até mesmo como metáfora para as crianças que crescem em campos fétidos e violentos.
A única luz nesse mundo escurecido pela ausência da razão é proporcionada pelo trabalho das organizações humanitárias. Os valores universais da civilização, celebrados por ocasião do Natal, movem os voluntários em Darfur como os ventos giram os moinhos. Esses abnegados de diferentes partes do planeta, inclusive do Brasil, mantêm viva a esperança de que, um dia, a comunidade internacional finalmente dirá um sonoro basta ao que ocorre no Sudão.
(...)Cinco anos atrás, quando a opinião pública do planeta começou a ser informada sobre a matança em Darfur, havia a convicção de que as organizações mundiais provariam sua capacidade de impedir, às portas do século XXI, extermínios como os que assolaram a história dos 100 anos anteriores. Hoje, os fatos atestam que tal desígnio fracassou.
Este mês marca o aniversário de sessenta anos da assinatura da Convenção para a Prevenção e Punição do Genocídio da Organização das Nações Unidas, que definiu como crime internacional a tentativa de destruir a totalidade ou parte de um grupo nacional, étnico, racial ou religioso. Segundo o texto da ONU, não é preciso haver assassinatos em massa para que um crime seja classificado como genocídio. Impor condições de vida subumanas a um grupo de pessoas semelhantes entre si, com o objetivo de levar à sua destruição física, também se enquadra nos critérios da convenção. É o que ocorre em Darfur.
(...)Atuam na região dezesseis agências da ONU e 85 ONGs, que prestam serviços como atendimento de saúde e distribuição de comida. Para cada 366 habitantes de Darfur, há um trabalhador humanitário. Entre eles, Mauricio Burtet, de 32 anos, um gaúcho hiperativo que trabalha em El Fasher como chefe de campo do Programa Alimentar Mundial (PAM), agência da ONU especializada em distribuição de comida em situações de emergência.
(...)Um dos homens responsáveis por proteger a população civil de ataques como esses é o general Henry Anyidoho, de Gana, vice-representante especial da Unamid, a força de paz conjunta da ONU e da União Africana em Darfur. (...)Uma missão de paz depende da boa vontade das nações para receber soldados e veículos emprestados. "Quem sabe o governo brasileiro não pode ceder alguns de seus aviões militares da Embraer?", diz Anyidoho. Ele está acostumado a não ser ouvido. No início da década de 90, o general ganense de 120 quilos era o segundo no comando da força da ONU em Ruanda, quando 800000 tútsis foram massacrados por milícias hutus. Anyidoho e seu chefe, o general canadense Roméo Dal-laire, alertaram a comunidade internacional sobre a limpeza étnica antes que ela acontecesse e pediram ao Conselho de Segurança mais soldados e autorização para impedir a matança. Em vez disso, foram ignorados e impedidos de interceder no que o presidente americano Bill Clinton chamou, na ocasião, de "assunto interno de Ruanda". Anyidoho assistiu impotente ao genocídio.
(...)O ponto de encontro de trabalhadores de organizações de ajuda humanitária, funcionários da ONU e jornalistas, enquanto lutam contra a burocracia montada para impedi-los de ir a Darfur, é Cartum. A capital do Sudão é uma introdução eloqüente ao país. O banheiro do Ministério das Relações Exteriores não tem vaso sanitário, apenas um buraco no chão.
(...)Não há muito que fazer na capital. Os canais de televisão abertos são controlados pelo governo. Os jornais, censurados. "Todas as tardes, um funcionário da segurança nacional vem à redação para vetar os artigos que falem do indiciamento de Al-Bashir, de Darfur ou dos desastres ambientais causados pela exploração de petróleo", diz Omuno Otto, membro do conselho editorial do jornal Khartoum Monitor. Apenas um em cada 126 sudaneses tem acesso à internet. No Brasil, a média é de um em cada cinco habitantes.
(...)Uma tentativa de colocar rebeldes e o ditador Al-Bashir para negociar está sendo feita pelo governo do Catar, no Oriente Médio. O problema é que Al-Bashir já descumpriu outros acordos de cessar-fogo. Por isso, são exigidas do seu governo quatro provas de confiança. (...) Uma delas é que o governo deverá cessar por completo os bombardeios e iniciar o desarmamento das milícias. Este será o maior desafio porque, como diz o ditado sudanês, dar comida ao leão é fácil. Difícil é tirar. O indiciamento de Al-Bashir irritou o regime militar do Sudão e atrapalhou o trabalho das organizações internacionais no país. Mas criou uma oportunidade: Darfur voltou ao centro das preocupações dos políticos do país e há uma convicção generalizada de que é preciso encontrar uma saída para a região. Esse pode ser o primeiro passo para a paz. Inshallah (se Alá quiser, em árabe). (Revista Veja)
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