Um dia, acreditei no sonho de que poderia me desapegar dos arquivos materiais e levar uma vida mais leve, com aparelhos portáteis e todos os meus arquivos guardados em sites na internet. Eu poderia ignorar o disco rígido do meu computador, aposentar o HD externo e me libertar da obsessão de queimar back-ups em DVDs. Guardaria minhas fotos no Flickr, vídeos no YouTube, contatos dos amigos no Facebook, documentos e planilhas no GoogleDocs e agenda no calendário do Google. Essas empresas se oferecem para armazenar nossos preciosos dados. Eles são divididos em fragmentos de informação e pulverizados entre milhares de servidores próprios e alugados, espalhados por vários continentes, conectados por redes de comunicação rápida. Tudo isso forma um complexo sistema que os engenheiros batizaram de nuvem de computação.
Nesse sistema de nuvens, assim espalhados e replicados, meus arquivos estariam seguros. Com um login e uma senha, eu acessaria mensagens, contatos e memórias de qualquer netbook, celular ou tablet com uma conexão de internet. Viajaria por aí como um verdadeiro nômade digital. Perfeito, não? Só existe um probleminha: a internet pode sair do ar. Ou – pior ainda – uma dessas seções da nuvem de computação pode sofrer um problema técnico insolúvel e transformar meus dados em fumaça. Para sempre.
Na semana passada, os 146 milhões de usuários mundiais do Gmail, o e-mail grátis do Google, tiveram uma amostra dessa insegurança. O serviço ficou fora do ar por quase duas horas na terça-feira, dia 1º de setembro. Para quem confiava no webmail como a água da torneira ou a eletricidade na tomada, foi um transtorno. O advogado Antonio Carlos Silva, de Boa Esperança, em Minas Gerais, não conseguiu cumprir alguns prazos na remessa de cópias de processos e guias de recolhimento de taxas. “A maior parte deles com prazos curtos e peremptórios”, disse. Para atender alguns dos clientes, Silva teve de recorrer ao fax. “Não tive prejuízo financeiro. Mas perdi tempo.” O Google foi a público prestar contas. “Gostaria de pedir desculpas a todos vocês”, afirmou Bem Treynor, vice-presidente de engenharia da empresa. Segundo o Google, o problema ocorreu durante uma operação de manutenção dos servidores. Será que estamos depositando confiança demais nas nuvens?
Não é a primeira fez que algo assim acontece. No mês passado, o serviço de mensagens curtas Twitter, um dos meios de comunicação emergentes no mundo, ficou um dia praticamente fora do ar por causa do ataque de hackers. A empresa não divulga o número de usuários, mas acredita-se que a pane tenha afetado milhões de pessoas. Mais sérios são os crescentes casos de gente que perdeu definitivamente seus dados. Em novembro de 2008, uma falha da rede social Facebook apagou dados pessoais de 19 milhões de usuários. A empresa não tinha cópia de segurança. Um dos prejudicados, o consultor tecnológico americano David Peterson, estava revoltado. “Discos queimam o tempo todo. E hackers podem tirar seu serviço do ar. Mas como uma empresa perde dados em uma era em que sistemas redundantes são algo tão básico?” Em março, o Facebook voltou a ter problemas. Os discos que armazenavam de 10% a 15% das fotos dos usuários foram corrompidos. A empresa disse ter recuperado todas as imagens em poucos dias. Mas em julho ainda havia gente reclamando de foto sumida.
Existe uma tendência de serviços e aparelhos que transferem parte ou toda a responsabilidade de guardar os dados para terceiros. Ela começou em 1996, quando os americanos Sabeer Bhatia e Jack Smith lançaram o Hotmail, um dos primeiros provedores de e-mail virtual. Com a evolução das opções de serviços e programas do tipo, o Google anunciou em julho deste ano que seu navegador Chrome vai virar um sistema operacional completo, onde tudo vai rodar na internet. O sucesso dos netbooks se ampara na confiança na nuvem computacional. Eles não têm DVD nem muita memória. A ideia é que uma boa conexão complemente o que os netbooks não oferecem dentro da carcaça de plástico.
Mas os problemas começaram a aparecer. Há dois anos, Érica Salazar, apresentadora da TV Panorama, em Juiz de Fora, Minas Gerais, perdeu tudo o que tinha no Flickr, o maior e mais tradicional álbum de fotos on-line. Era uma conta em que ela trocava informações e partilhava imagens sobre maquiagem. “Um dia fui entrar e minhas fotos, contatos e comentários tinham desaparecido”, afirma. Érica reclamou. Segundo ela, o Flickr respondeu que estavam mudando o sistema e que a conta voltaria ao normal. “Não foi o que aconteceu”, diz Érica. Ela chegou a criar outra conta no Flickr. “Mas me senti insegura e nunca mais usei para colocar fotos.”
Pior é quando a pessoa paga o serviço on-line, como aconteceu com o americano Steve Portigal, dono de uma consultoria de marketing em Pacifica, nos arredores de São Francisco. Ele tinha uma conta Pro (que custa R$ 45,90 por ano) no Flickr, com cerca de 5 mil fotos. No início de 2008, clicou desavisadamente em um link de um comentário postado no Flickr. O link era uma armadilha. Ele instalava um programa que rouba senhas de usuários. A pessoa por trás do programa maligno apagou a conta de Portigal. “Segundo discussões no fórum do Flickr, a empresa sabia desse problema havia mais de um ano e não tomara medidas para proteger os usuários”, diz Portigal. “Como o Yahoo (dono do Flickr) deixou alguém postar um link tão perigoso?”
Além das próprias imagens (que ele tem copiadas em casa), o que mais Portigal lamenta é ter perdido a rede de relacionamento que construiu em torno delas. “Perdi minha audiência, as fotos marcadas por outros, os grupos dos quais eu participava, os comentários. Isso era minha história, minha parte naquela comunidade.” Dessa rede de relacionamento, que é a experiência mais rica de quem coloca e partilha documentos on-line, ninguém pode fazer cópia de segurança. Portigal vê isso com amarga ironia. “O movimento de mídias sociais e sites colaborativos nos convida a contribuir com o conteúdo. Nós é que criamos o valor para elas. O YouTube não seria vendido por US$ 1,65 bilhão (ao Google) sem nossos vídeos”, afirma. “Por que não posso conservar uma cópia da rede de relacionamento que criei?” Depois de ter se queixado ao Flickr, Portigal recebeu uma mensagem com pedido de desculpas. A empresa devolveu-lhe a conta Pro, mas não recuperou as fotos nem as informações agregadas. “Quando a conta é apagada por alguém que teve acesso ao login e à senha, presumimos que é o desejo do usuário e todos os dados são excluídos”, escreveu-lhe um funcionário do Flickr.
As empresas dizem que tomam todo cuidado possível. “Temos centrais de dados espalhadas por vários continentes, com cópias dos arquivos dos usuários”, disse Fabio Bolsinhas, diretor de produtos do Yahoo no Brasil, responsável pelo Flickr. “Não conheço nenhum caso de dados perdidos.” O diretor de comunicação do Google Brasil, Felix Ximenes, foi menos taxativo. “Fazemos um grande investimento em segurança. Mas não existe sistema no mundo à prova de falhas. Isso é inerente à tecnologia”, disse. “Em milhões de usuários, sempre vai ter um caso que não recupera os dados.”
Uma queixa frequente dos usuários é a precariedade no atendimento. Se você está acostumado a ligar para um serviço de atendimento ao cliente e acha ruim as centrais telefônicas, com fila de espera e atendentes impessoais, experimente o sistema de queixas dos sites. Na maioria dos serviços, como o Facebook, depois de vasculhar cada canto do site, você consegue chegar a um formulário on- -line para enviar sua queixa. O Flickr diz que responde em uma semana. Outros podem demorar mais. Muitas dessas informações não estão em português, mesmo quando o resto do site já tem versão brasileira. Em muitos casos, o suporte é feito por meio de um fórum de discussão. Essa é a estratégia do Google. “Não dá para ter um 0800 num produto grátis”, diz Ximenes. “Pela escala de usuários, seria preciso contratar um exército de pessoas para atender. Não faz sentido para nosso modelo de negócios.”
Segundo ele, quem usa os serviços gratuitos da internet deve se acostumar a uma nova relação entre empresa e consumidor. No fórum, as pessoas se ajudam, tentando oferecer soluções para as outras, a partir das próprias experiências e frustrações. De vez em quando, alguém que se identifica como funcionário do Google intervém, pedindo detalhes. “As pessoas aprendem coletivamente. É uma nova filosofia de consumo”, diz Ximenes. Um lado positivo disso é a transparência: qualquer um sabe, acessando o fórum, os defeitos do produto e a qualidade do atendimento.
Esses defeitos não vão acabar com as nuvens. Mesmo com as falhas técnicas, os arquivos guardados on-line geralmente estão mais seguros que os que ficam em nosso computador pessoal. Segundo o FBI, a polícia federal americana, um em cada dez notebooks é roubado no primeiro ano. Um disco rígido comum (externo ou de computador) pifa em três ou cinco anos de uso. Em parte por isso, cerca de 15% dos notebooks estragam durante um ano, diz o instituto de pesquisa IDC. A solução, ao menos por enquanto, talvez seja confiar na nuvem. Mas confiar desconfiando – e fazer a tradicional cópia de segurança em um disco rígido próprio. Ou, melhor ainda, em DVDs guardados no fundo do armário. ÉPOCA
Nesse sistema de nuvens, assim espalhados e replicados, meus arquivos estariam seguros. Com um login e uma senha, eu acessaria mensagens, contatos e memórias de qualquer netbook, celular ou tablet com uma conexão de internet. Viajaria por aí como um verdadeiro nômade digital. Perfeito, não? Só existe um probleminha: a internet pode sair do ar. Ou – pior ainda – uma dessas seções da nuvem de computação pode sofrer um problema técnico insolúvel e transformar meus dados em fumaça. Para sempre.
Na semana passada, os 146 milhões de usuários mundiais do Gmail, o e-mail grátis do Google, tiveram uma amostra dessa insegurança. O serviço ficou fora do ar por quase duas horas na terça-feira, dia 1º de setembro. Para quem confiava no webmail como a água da torneira ou a eletricidade na tomada, foi um transtorno. O advogado Antonio Carlos Silva, de Boa Esperança, em Minas Gerais, não conseguiu cumprir alguns prazos na remessa de cópias de processos e guias de recolhimento de taxas. “A maior parte deles com prazos curtos e peremptórios”, disse. Para atender alguns dos clientes, Silva teve de recorrer ao fax. “Não tive prejuízo financeiro. Mas perdi tempo.” O Google foi a público prestar contas. “Gostaria de pedir desculpas a todos vocês”, afirmou Bem Treynor, vice-presidente de engenharia da empresa. Segundo o Google, o problema ocorreu durante uma operação de manutenção dos servidores. Será que estamos depositando confiança demais nas nuvens?
Não é a primeira fez que algo assim acontece. No mês passado, o serviço de mensagens curtas Twitter, um dos meios de comunicação emergentes no mundo, ficou um dia praticamente fora do ar por causa do ataque de hackers. A empresa não divulga o número de usuários, mas acredita-se que a pane tenha afetado milhões de pessoas. Mais sérios são os crescentes casos de gente que perdeu definitivamente seus dados. Em novembro de 2008, uma falha da rede social Facebook apagou dados pessoais de 19 milhões de usuários. A empresa não tinha cópia de segurança. Um dos prejudicados, o consultor tecnológico americano David Peterson, estava revoltado. “Discos queimam o tempo todo. E hackers podem tirar seu serviço do ar. Mas como uma empresa perde dados em uma era em que sistemas redundantes são algo tão básico?” Em março, o Facebook voltou a ter problemas. Os discos que armazenavam de 10% a 15% das fotos dos usuários foram corrompidos. A empresa disse ter recuperado todas as imagens em poucos dias. Mas em julho ainda havia gente reclamando de foto sumida.
Existe uma tendência de serviços e aparelhos que transferem parte ou toda a responsabilidade de guardar os dados para terceiros. Ela começou em 1996, quando os americanos Sabeer Bhatia e Jack Smith lançaram o Hotmail, um dos primeiros provedores de e-mail virtual. Com a evolução das opções de serviços e programas do tipo, o Google anunciou em julho deste ano que seu navegador Chrome vai virar um sistema operacional completo, onde tudo vai rodar na internet. O sucesso dos netbooks se ampara na confiança na nuvem computacional. Eles não têm DVD nem muita memória. A ideia é que uma boa conexão complemente o que os netbooks não oferecem dentro da carcaça de plástico.
Mas os problemas começaram a aparecer. Há dois anos, Érica Salazar, apresentadora da TV Panorama, em Juiz de Fora, Minas Gerais, perdeu tudo o que tinha no Flickr, o maior e mais tradicional álbum de fotos on-line. Era uma conta em que ela trocava informações e partilhava imagens sobre maquiagem. “Um dia fui entrar e minhas fotos, contatos e comentários tinham desaparecido”, afirma. Érica reclamou. Segundo ela, o Flickr respondeu que estavam mudando o sistema e que a conta voltaria ao normal. “Não foi o que aconteceu”, diz Érica. Ela chegou a criar outra conta no Flickr. “Mas me senti insegura e nunca mais usei para colocar fotos.”
Pior é quando a pessoa paga o serviço on-line, como aconteceu com o americano Steve Portigal, dono de uma consultoria de marketing em Pacifica, nos arredores de São Francisco. Ele tinha uma conta Pro (que custa R$ 45,90 por ano) no Flickr, com cerca de 5 mil fotos. No início de 2008, clicou desavisadamente em um link de um comentário postado no Flickr. O link era uma armadilha. Ele instalava um programa que rouba senhas de usuários. A pessoa por trás do programa maligno apagou a conta de Portigal. “Segundo discussões no fórum do Flickr, a empresa sabia desse problema havia mais de um ano e não tomara medidas para proteger os usuários”, diz Portigal. “Como o Yahoo (dono do Flickr) deixou alguém postar um link tão perigoso?”
Além das próprias imagens (que ele tem copiadas em casa), o que mais Portigal lamenta é ter perdido a rede de relacionamento que construiu em torno delas. “Perdi minha audiência, as fotos marcadas por outros, os grupos dos quais eu participava, os comentários. Isso era minha história, minha parte naquela comunidade.” Dessa rede de relacionamento, que é a experiência mais rica de quem coloca e partilha documentos on-line, ninguém pode fazer cópia de segurança. Portigal vê isso com amarga ironia. “O movimento de mídias sociais e sites colaborativos nos convida a contribuir com o conteúdo. Nós é que criamos o valor para elas. O YouTube não seria vendido por US$ 1,65 bilhão (ao Google) sem nossos vídeos”, afirma. “Por que não posso conservar uma cópia da rede de relacionamento que criei?” Depois de ter se queixado ao Flickr, Portigal recebeu uma mensagem com pedido de desculpas. A empresa devolveu-lhe a conta Pro, mas não recuperou as fotos nem as informações agregadas. “Quando a conta é apagada por alguém que teve acesso ao login e à senha, presumimos que é o desejo do usuário e todos os dados são excluídos”, escreveu-lhe um funcionário do Flickr.
As empresas dizem que tomam todo cuidado possível. “Temos centrais de dados espalhadas por vários continentes, com cópias dos arquivos dos usuários”, disse Fabio Bolsinhas, diretor de produtos do Yahoo no Brasil, responsável pelo Flickr. “Não conheço nenhum caso de dados perdidos.” O diretor de comunicação do Google Brasil, Felix Ximenes, foi menos taxativo. “Fazemos um grande investimento em segurança. Mas não existe sistema no mundo à prova de falhas. Isso é inerente à tecnologia”, disse. “Em milhões de usuários, sempre vai ter um caso que não recupera os dados.”
Uma queixa frequente dos usuários é a precariedade no atendimento. Se você está acostumado a ligar para um serviço de atendimento ao cliente e acha ruim as centrais telefônicas, com fila de espera e atendentes impessoais, experimente o sistema de queixas dos sites. Na maioria dos serviços, como o Facebook, depois de vasculhar cada canto do site, você consegue chegar a um formulário on- -line para enviar sua queixa. O Flickr diz que responde em uma semana. Outros podem demorar mais. Muitas dessas informações não estão em português, mesmo quando o resto do site já tem versão brasileira. Em muitos casos, o suporte é feito por meio de um fórum de discussão. Essa é a estratégia do Google. “Não dá para ter um 0800 num produto grátis”, diz Ximenes. “Pela escala de usuários, seria preciso contratar um exército de pessoas para atender. Não faz sentido para nosso modelo de negócios.”
Segundo ele, quem usa os serviços gratuitos da internet deve se acostumar a uma nova relação entre empresa e consumidor. No fórum, as pessoas se ajudam, tentando oferecer soluções para as outras, a partir das próprias experiências e frustrações. De vez em quando, alguém que se identifica como funcionário do Google intervém, pedindo detalhes. “As pessoas aprendem coletivamente. É uma nova filosofia de consumo”, diz Ximenes. Um lado positivo disso é a transparência: qualquer um sabe, acessando o fórum, os defeitos do produto e a qualidade do atendimento.
Esses defeitos não vão acabar com as nuvens. Mesmo com as falhas técnicas, os arquivos guardados on-line geralmente estão mais seguros que os que ficam em nosso computador pessoal. Segundo o FBI, a polícia federal americana, um em cada dez notebooks é roubado no primeiro ano. Um disco rígido comum (externo ou de computador) pifa em três ou cinco anos de uso. Em parte por isso, cerca de 15% dos notebooks estragam durante um ano, diz o instituto de pesquisa IDC. A solução, ao menos por enquanto, talvez seja confiar na nuvem. Mas confiar desconfiando – e fazer a tradicional cópia de segurança em um disco rígido próprio. Ou, melhor ainda, em DVDs guardados no fundo do armário. ÉPOCA
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