No começo de fevereiro, depois de um ano e meio em vários centros de detenção administrados pelos Estados Unidos, o detento número 318360 recebeu uma carta, que deveria entregar a sua mãe. "Parabéns pela libertação de seu filho", dizia a carta, impressa com o selo do Departamento de Defesa dos Estados Unidos e escrita em árabe. "O caso dele foi concluído e decidimos que ele deve ser solto."
Com isso, mais 25 dólares em dinheiro e um conjunto novo de roupas, o detento, Alaq Khleirallah, de 27 anos, estava de volta às ruas de Bagdá. Ele é um dos cerca de 90 mil detentos que foram libertados de centros de detenção americanos nos últimos seis anos, um processo previsto para terminar no próximo ano, quando o último centro deve ser transferido para o controle iraquiano. Quase dez mil detentos permanecem sob custódia dos Estados Unidos.
Eles foram recebidos com amargura. Muitos retornam a famílias debilitadas por dívidas acarretadas por meses sem um provedor. Insurgentes enxergam essas pessoas como potenciais recrutas – ou agentes americanos. Antigos amigos, vizinhos e até parentes se recusam a cumprimentá-los em público, suspeitando de seu passado. Eles também temem que alguns minutos de socialização signifiquem culpa por associação quando autoridades, como muitas vezes intimidam os oficiais iraquianos, cheguem para prendê-los.
Todos esses fatores são agravados quando os homens não encontram trabalho legítimo, devido à falta de confiança num mercado de trabalho brutal. Numa cidade onde existem outras formas (mais sangrentas) de ganhar dinheiro, essa é uma mistura perigosa.
"É como o personagem Jean Valjean", disse Abdulhassan Jabr, que leu "Os Miseráveis" durante seus 15 meses no Camp Bucca, maior centro de detenção administrado pelos Estados Unidos no Iraque. "Um inocente é jogado na prisão, perde o emprego, sua família passa fome. Depois, ele não consegue um trabalho quando é libertado. É claro que ele vai para o caminho errado."
Jabr atualmente trabalha num centro de reabilitação na cidade de Sadr, criado por oficiais americanos e um xeque local, com recursos da Agência para o Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos. O centro oferece aulas de capacitação e sessões de aconselhamento.
Muitos dos homens do centro afirmaram frequentá-lo apenas pela possibilidade de receber pequenas compensações no final. O curso terminou em maio, e ex-detentos disseram recentemente ainda não ter recebido dinheiro algum. Capacitação é inútil se não há trabalho, dizem eles, e as famílias estão cada vez mais impacientes.
Khleirallah, que sustenta uma esposa e quatro filhos, era policial. Ele e três de seus irmãos foram presos, em 2007, não muito tempo depois que seu pai e dois outros irmãos foram mortos pelo Exército do Mahdi, a milícia do clérigo anti-americano xiita Muqtada al-Sadr.
O antigo trabalho de Khleirallah não esperou. Ele e muitos outros detentos disseram que policias lhe contaram sobre a proibição por lei de conseguir trabalho nas forças de segurança por 18 meses após sua libertação. Contudo, esse período de espera poderia ser contornado com um grande suborno. Khleirallah achou aquela situação inconcebível, pois já tinha um débito considerável.
Segundo vários oficiais experientes da Justiça iraquiana, essa regra não existe.
Futuro - Sentado num edifício recém-pintado (que ele espera se transformar num centro de reabilitação), Asaad Maki Gannaoui, xiita e membro de uma força de segurança local no bairro de Jamila, disse ser apenas uma questão de meses até que os detentos libertados recorram às milícias para obter trabalho.
"Ele é engenheiro e não consegue arrumar emprego em lugar nenhum", disse Gannaoui, apontando para um dos quatro homens no recinto. Todos balançaram a cabeça, concordando. "É pedir para que eles façam coisas ruins."
Oficiais iraquianos frequentemente culpam ex-detentos por ataques, mas isso é mais uma impressão do que realidade, disse o brigadeiro-general David E. Quantock. Ele é general comandante da Força-Tarefa 134, a unidade americana responsável por supervisionar o sistema de detenção no Iraque.
Estatísticas verificáveis sobre reincidências são desconhecidas, em parte porque o crescente sistema penitenciário do Iraque não tem uma base de dados centralizada. No entanto, das 9.286 pessoas presas pelos americanos em 2008, menos de 2% delas já estiveram sob custódia dos Estados Unidos anteriormente.
Nos primeiros anos da guerra, muitos detentos eram simplesmente pessoas que estavam no lugar errado, na hora errada, disse Quantock. Até meados de 2007, a probabilidade era que determinado detento fosse uma ameaça de baixo risco – por exemplo, alguém pago para proteger insurgentes.
Apesar de vários detentos de alto risco, alguns com ligações com grupos militantes xiitas, terem sido libertados recentemente, como demonstração de reconciliação, a maioria dos ex-detentos caem na categoria "baixa ameaça", disse Quantock. Muitos deles se envolveram com milícias simplesmente porque havia poucas outras opções na época em que foram presos. Contudo, a perda de força da insurgência não significa que há muitas oportunidades pacíficas.
Em 2005, Iesa Muayad al-Khayat viu seu pai, empregado de uma empresa americana, ser baleado e morto na frente de casa. A família se mudou de Adhamiya, bairro que estava ficando repleto de insurgentes sunitas. Sua mãe depois casou novamente. Khayat, na época com 17 anos, ficou para trás. Ele queria evitar que a casa da família caísse nas mãos erradas.
Mesmo enfrentando ameaças diárias, ele tentou se agarrar à casa da maneira que pôde. Uma tarde, um homem da vizinhança, de má fé, pediu a Khayat um empréstimo de US$ 70. Quando as tropas americanas revistaram a casa de Khayat, em 2007, encontraram evidências do empréstimo e o levaram.
"Sendo honesto: tenho muita raiva", disse ele, várias vezes. "Enfrentei o problema de forma errada."
Na prisão, Khayat foi acusado de espionagem. Algumas vezes, ele foi espancado por outros detentos, só porque sabia falar inglês. Durante seus 11 meses de detenção, ele só recebeu uma única carta do mundo exterior. Era de sua mãe, informando-o de que a família estava de mudança para os Estados Unidos.
Em março de 2008, Khayat voltou ao seu bairro sozinho e descobriu que sua casa tinha sido inteiramente destruída. As ruas eram muito mais seguras – em parte devido às revistas (e numa dessas ele foi preso). Ainda assim, os vizinhos disseram que ele teve sorte de ter sido detido. Pessoas conhecidas foram mortas enquanto ele estava na prisão.
Disseram a Khayat que um dos assassinos de seu pai tinha emigrado para a Suécia. Porém, ninguém sabia dizer o que aconteceu com os outros, muito menos os que tinham ameaçado Khayat meses antes de sua prisão. Agora que ele estava solto e sozinho, percebeu que ainda era um homem marcado.
Khayat se mudou e passou a morar com um parente em outra parte da cidade. Uma tentativa de conseguir emprego como intérprete junto aos americanos fracassou. Depois de quase um ano sem emprego, ele encontrou trabalho numa produtora de TV britânica. Com esperança de obter um visto americano, ele aguarda – quer deixar o Iraque. THE NEW YORK TIMES
Com isso, mais 25 dólares em dinheiro e um conjunto novo de roupas, o detento, Alaq Khleirallah, de 27 anos, estava de volta às ruas de Bagdá. Ele é um dos cerca de 90 mil detentos que foram libertados de centros de detenção americanos nos últimos seis anos, um processo previsto para terminar no próximo ano, quando o último centro deve ser transferido para o controle iraquiano. Quase dez mil detentos permanecem sob custódia dos Estados Unidos.
Eles foram recebidos com amargura. Muitos retornam a famílias debilitadas por dívidas acarretadas por meses sem um provedor. Insurgentes enxergam essas pessoas como potenciais recrutas – ou agentes americanos. Antigos amigos, vizinhos e até parentes se recusam a cumprimentá-los em público, suspeitando de seu passado. Eles também temem que alguns minutos de socialização signifiquem culpa por associação quando autoridades, como muitas vezes intimidam os oficiais iraquianos, cheguem para prendê-los.
Todos esses fatores são agravados quando os homens não encontram trabalho legítimo, devido à falta de confiança num mercado de trabalho brutal. Numa cidade onde existem outras formas (mais sangrentas) de ganhar dinheiro, essa é uma mistura perigosa.
"É como o personagem Jean Valjean", disse Abdulhassan Jabr, que leu "Os Miseráveis" durante seus 15 meses no Camp Bucca, maior centro de detenção administrado pelos Estados Unidos no Iraque. "Um inocente é jogado na prisão, perde o emprego, sua família passa fome. Depois, ele não consegue um trabalho quando é libertado. É claro que ele vai para o caminho errado."
Jabr atualmente trabalha num centro de reabilitação na cidade de Sadr, criado por oficiais americanos e um xeque local, com recursos da Agência para o Desenvolvimento Internacional dos Estados Unidos. O centro oferece aulas de capacitação e sessões de aconselhamento.
Muitos dos homens do centro afirmaram frequentá-lo apenas pela possibilidade de receber pequenas compensações no final. O curso terminou em maio, e ex-detentos disseram recentemente ainda não ter recebido dinheiro algum. Capacitação é inútil se não há trabalho, dizem eles, e as famílias estão cada vez mais impacientes.
Khleirallah, que sustenta uma esposa e quatro filhos, era policial. Ele e três de seus irmãos foram presos, em 2007, não muito tempo depois que seu pai e dois outros irmãos foram mortos pelo Exército do Mahdi, a milícia do clérigo anti-americano xiita Muqtada al-Sadr.
O antigo trabalho de Khleirallah não esperou. Ele e muitos outros detentos disseram que policias lhe contaram sobre a proibição por lei de conseguir trabalho nas forças de segurança por 18 meses após sua libertação. Contudo, esse período de espera poderia ser contornado com um grande suborno. Khleirallah achou aquela situação inconcebível, pois já tinha um débito considerável.
Segundo vários oficiais experientes da Justiça iraquiana, essa regra não existe.
Futuro - Sentado num edifício recém-pintado (que ele espera se transformar num centro de reabilitação), Asaad Maki Gannaoui, xiita e membro de uma força de segurança local no bairro de Jamila, disse ser apenas uma questão de meses até que os detentos libertados recorram às milícias para obter trabalho.
"Ele é engenheiro e não consegue arrumar emprego em lugar nenhum", disse Gannaoui, apontando para um dos quatro homens no recinto. Todos balançaram a cabeça, concordando. "É pedir para que eles façam coisas ruins."
Oficiais iraquianos frequentemente culpam ex-detentos por ataques, mas isso é mais uma impressão do que realidade, disse o brigadeiro-general David E. Quantock. Ele é general comandante da Força-Tarefa 134, a unidade americana responsável por supervisionar o sistema de detenção no Iraque.
Estatísticas verificáveis sobre reincidências são desconhecidas, em parte porque o crescente sistema penitenciário do Iraque não tem uma base de dados centralizada. No entanto, das 9.286 pessoas presas pelos americanos em 2008, menos de 2% delas já estiveram sob custódia dos Estados Unidos anteriormente.
Nos primeiros anos da guerra, muitos detentos eram simplesmente pessoas que estavam no lugar errado, na hora errada, disse Quantock. Até meados de 2007, a probabilidade era que determinado detento fosse uma ameaça de baixo risco – por exemplo, alguém pago para proteger insurgentes.
Apesar de vários detentos de alto risco, alguns com ligações com grupos militantes xiitas, terem sido libertados recentemente, como demonstração de reconciliação, a maioria dos ex-detentos caem na categoria "baixa ameaça", disse Quantock. Muitos deles se envolveram com milícias simplesmente porque havia poucas outras opções na época em que foram presos. Contudo, a perda de força da insurgência não significa que há muitas oportunidades pacíficas.
Em 2005, Iesa Muayad al-Khayat viu seu pai, empregado de uma empresa americana, ser baleado e morto na frente de casa. A família se mudou de Adhamiya, bairro que estava ficando repleto de insurgentes sunitas. Sua mãe depois casou novamente. Khayat, na época com 17 anos, ficou para trás. Ele queria evitar que a casa da família caísse nas mãos erradas.
Mesmo enfrentando ameaças diárias, ele tentou se agarrar à casa da maneira que pôde. Uma tarde, um homem da vizinhança, de má fé, pediu a Khayat um empréstimo de US$ 70. Quando as tropas americanas revistaram a casa de Khayat, em 2007, encontraram evidências do empréstimo e o levaram.
"Sendo honesto: tenho muita raiva", disse ele, várias vezes. "Enfrentei o problema de forma errada."
Na prisão, Khayat foi acusado de espionagem. Algumas vezes, ele foi espancado por outros detentos, só porque sabia falar inglês. Durante seus 11 meses de detenção, ele só recebeu uma única carta do mundo exterior. Era de sua mãe, informando-o de que a família estava de mudança para os Estados Unidos.
Em março de 2008, Khayat voltou ao seu bairro sozinho e descobriu que sua casa tinha sido inteiramente destruída. As ruas eram muito mais seguras – em parte devido às revistas (e numa dessas ele foi preso). Ainda assim, os vizinhos disseram que ele teve sorte de ter sido detido. Pessoas conhecidas foram mortas enquanto ele estava na prisão.
Disseram a Khayat que um dos assassinos de seu pai tinha emigrado para a Suécia. Porém, ninguém sabia dizer o que aconteceu com os outros, muito menos os que tinham ameaçado Khayat meses antes de sua prisão. Agora que ele estava solto e sozinho, percebeu que ainda era um homem marcado.
Khayat se mudou e passou a morar com um parente em outra parte da cidade. Uma tentativa de conseguir emprego como intérprete junto aos americanos fracassou. Depois de quase um ano sem emprego, ele encontrou trabalho numa produtora de TV britânica. Com esperança de obter um visto americano, ele aguarda – quer deixar o Iraque. THE NEW YORK TIMES
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