Ele já respondeu na Justiça por tráfico de drogas, sequestro e vadiagem. Esta última acusação, de vadio, é a que mais o incomoda em sua trajetória no mundo do crime. “Nunca fui vadio, sempre trabalhei”, defende-se Hélio da Silva Sampaio, 51 anos, mais conhecido como Virinha ou Viriato de Acari.
Foi feirante, exerceu algumas das atividades criminosas citadas acima, mas, garante, sempre pegou no pesado, como faz hoje em seu trabalho no cais do porto, na Zona Portuária do Rio.
"A vida não me ofereceu muitas oportunidades. Fui crescendo e aprendendo com os mais velhos. A oferta maior era a do crime. Muitos dos meus companheiros, que entraram comigo para essa vida, estão mortos. Eu sou um sobrevivente. Participei de vários confrontos com a polícia, levei muitos tiros, mas sobrevivi. Hoje, quero viver bem com a minha mulher, trabalhar honestamente e jogar meu futebol", conta, mostrando as marcas de tiros pelo corpo ao lembrar sua trajetória.
Embora todos no bairro saibam que ele é o Viriato de Acari – batizado desta forma pelos policiais, segundo ele, para relacionar seu nome aos crimes na favela –, atualmente é chamado pela maioria de Hélio ou Seu Hélio. Ele foi um dos últimos processados por vadiagem no Brasil, segundo juristas consultados pelo G1.
A vadiagem é uma contravenção prevista no artigo 59 do decreto-lei 3.688 de 1941. A lei classifica como vadiagem "entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita". A pena pode variar entre 15 dias e três meses - clique aqui para ver.
"Viriato" foi preso e denunciado pelo Ministério Público por vadiagem em 1992. De acordo com a denúncia, ele trabalhava na rua como "lugar-tenente" do tráfico em Acari. A Justiça do Rio abriu processo contra ele. Ele recorreu pedindo o trancamento da ação penal ao Tribunal de Alçada Criminal do estado, que negou. O caso chegou ao Superior Tribunal de Justiça, que acabou decidindo pelo fim do processo em 1993 porque o réu "provou exercer atividade laborativa lícita". Na ocasião, ele afirmou que trabalhava no cais do porto.
Hoje, Hélio tem o respeito dos amigos. “É o comportamento dele que impôs isso. É uma pessoa alegre, afável, carinhosa com as crianças e os moleques. Merece respeito”, revelou um parceiro do futebol de Irajá, subúrbio do Rio, à reportagem, que acompanhou um jogo no último domingo (5).
Apesar da amizade, ele não escapa da gozação dos colegas de bola. “Quer sofrer, fica aí para assistir o Hélio jogar”, brinca um dos amigos, acompanhado da zoação dos demais, enquanto a dona do bar começa a servir tigelas de mocotó em meio a um esquentado bate-boca e troca de acusações sobre “entradas desleais”.
“Esses caras não sabem o que é entrada desleal. Eu, ainda moleque, trabalhando na feira, fui enquadrado por vadiagem, por falta de carteira assinada e outros documentos. O sargento me deixou horas de castigo no DPO (Destacamento de Policiamento Ostensivo) de Acari. Foi a maior humilhação, e só estimulou minha entrada no crime”, afirma.
Mas, ao se transformar em Virinha – apelido que ganhou por jogar bola de gude com habilidade e fazer uma elipse perfeita “virando” simultaneamente várias bolas do adversário – passou a se destacar na favela. Logo foi convidado para entrar no grupo dos “velhos” traficantes, que viam nele uma espécie de liderança.
“O Cy de Acari (Darcy da Silva Filho), que era o chefão na favela naquela época (década de 1980), dizia que eu era um garoto esperto e mandou eu fazer a contabilidade do tráfico. Não demorou muito e fui escolhido um dos homens fortes dele”, lembrando a formação de grupos armados que atuavam naquela região (Irajá, Acari, Fazenda Botafogo, Coelho Neto, Vigário Geral e Parada de Lucas). Cy foi assassinado em 1999.
Além de Cy, Viriato também conviveu com os criminosos mais procurados pela polícia, na época, Tonicão e Jorge Luís. “Botaram muita coisa na minha conta, também. Diziam que o Jorge Luís respondia a 66 processos. Em meu nome tinha mais de 30, a metade. Pô, quem era o chefe do tráfico era ele, não eu. Foi Deus que me livrou desse mundo do crime”, acredita, garantindo que já cumpriu a pena que lhe cabia na Justiça.
Viriato diz que deixou o crime quando um fornecedor de drogas e armas desistiu de fazer uma entrega no dia combinado, a pedido da mulher evangélica. Mas, mesmo sem a encomenda, o traficante fez o percurso acertado como se estivesse com o material.
“Foi abordado pela polícia, mas não estava com nada. Nós dois escapamos do flagrante. Para mim, isso é um livramento de Deus. Ele disse que foi graças às orações da mulher dele. Esse companheiro deixou o crime, a partir daquele dia, eu também, claro”, conta.
Vadiagem controversa - O juiz Fábio Aguiar Munhoz Soares, da 17ª Vara Criminal de São Paulo diz que os casos de processo por vadiagem eram comuns até a década de 70. Depois da promulgação da Constituição, em 1988, foram poucos os casos – entre eles, o de Viriato.
"A lei que contém a vadiagem é de 1941. É uma contravenção, como se fosse um crime menor. O legislador entendeu que alguns delitos de menor expressão deveriam ser considerados contravenção penal. De lá para cá o Brasil mudou, as coisas mudaram. Em algumas cidades do Brasil, a sua aplicação ainda pode ocorrer. Mas dificilmente será aplicada em cidades grandes, como São Paulo."
Para o magistrado, no entanto, é uma lei que não deve ser aplicada. "É mais fácil que o filho do pobre seja considerado vadio, porque fica ali na rua. O filho do rico, se não trabalhar, vive da renda do pai, faz outras coisas, não será considerado vadio, embora os dois tenham condições iguais para o trabalho. É totalmente inconstitucional."
O defensor público Gabriel Habib, da Defensoria Pública Federal no Rio de Janeiro, disse que a lei está em desuso porque traz conceitos que não são claros nem precisos. "O que é ociosidade? O que é subsistência? Geram dúvidas. Então a lei não caducou, mas está em desuso. Sobretudo em um país de miseráveis com tanto desemprego. Todo mundo sem emprego, renda, poderia ser condenado por ser vadio. Vadiagem não é contravenção. É um problema social. O próprio estado abandona o cidadão, depois quer punir por vadiagem?"
Em consulta ao site da Câmara dos Deputados, o G1 localizou ao menos quatro projetos de lei que revogam o artigo. No ano passado, o Congresso revogou o item que considerava a mendicância uma contravenção penal, mas não mexeu na punição à vadiagem.
Cidades que aplicam - Apesar das críticas dos juristas, o G1 localizou duas cidades brasileiras que dizem aplicar atualmente a lei da vadiagem.
Em Goioerê, uma cidade paranaense de 30 mil habitantes, o delegado local enquadrou oito pessoas por vadiagem neste ano. O escrivão da polícia local Mauro Lima contou ao G1 que a estratégia visa reduzir a criminalidade.
"Se alguém liga e avisa que tem pessoas em uma construção há duas horas consumindo drogas. A gente chega e não encontra nada. Pergunta se trabalha, se está desempregado ou procurando emprego. Autua o cidadão e leva para delegacia. Faz então um termo circunstanciado, mas como a pena não ultrapassa dois anos de prisão, ele é solto. Encaminhamos para a Justiça e já marcamos a primeira a audiência. Aí fica com o Ministério Público", explicou.
Mas o promotor da cidade paranaense, Thadeu Augimeri de Goés Lima, disse ao G1 que esse tipo de acusação não vira processo na cidade. "Eu entendo que essa contravenção não existe depois da Constituição de 1988. Contraria princípios do direito democrático. Ele penaliza, na verdade, um modo de ser e não de fazer." Para o promotor, se alguém estiver na rua trabalhando com tráfico de drogas, por exemplo, tem de ser penalizado no segundo aspecto.
"Eu não denuncio com base na lei da vadiagem. Quando os termos chegam no Juizado Especial Criminal, eu opino pelo arquivamento", destaca o promotor.
Em Assis, no interior de São Paulo, o delegado de polícia Luis Fernando Quinteiros de Souza causou polêmica quando decidiu aplicar a lei no ano passado. Ele explica, no entanto, que ninguém foi preso na cidade por vadiagem. "Essa operação, na realidade, foi para controlar e reduzir a criminalidade na cidade. Há muitas pessoas desocupadas, mas honestas. Mas gente que nunca procurou emprego? Procuramos verificar pessoas que sequer tinham procurado trabalho honesto."
Souza disse que as pessoas eram abordadas e orientadas sobre a necessidade de procurar trabalho honesto para não serem enquadradas na lei da vadiagem. "Foi mais um trabalho de marketing que deu resultado porque diminuiu a criminalidade na cidade. E continuamos com esse trabalho para restabelecer a ordem, que é chamado de 'Tolerância Zero'."
De acordo com o delegado de Assis, os policiais na cidade são orientados para continuar abordando eventuais "desocupados" pela lei da vadiagem. G1
Foi feirante, exerceu algumas das atividades criminosas citadas acima, mas, garante, sempre pegou no pesado, como faz hoje em seu trabalho no cais do porto, na Zona Portuária do Rio.
"A vida não me ofereceu muitas oportunidades. Fui crescendo e aprendendo com os mais velhos. A oferta maior era a do crime. Muitos dos meus companheiros, que entraram comigo para essa vida, estão mortos. Eu sou um sobrevivente. Participei de vários confrontos com a polícia, levei muitos tiros, mas sobrevivi. Hoje, quero viver bem com a minha mulher, trabalhar honestamente e jogar meu futebol", conta, mostrando as marcas de tiros pelo corpo ao lembrar sua trajetória.
Embora todos no bairro saibam que ele é o Viriato de Acari – batizado desta forma pelos policiais, segundo ele, para relacionar seu nome aos crimes na favela –, atualmente é chamado pela maioria de Hélio ou Seu Hélio. Ele foi um dos últimos processados por vadiagem no Brasil, segundo juristas consultados pelo G1.
A vadiagem é uma contravenção prevista no artigo 59 do decreto-lei 3.688 de 1941. A lei classifica como vadiagem "entregar-se alguém habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita". A pena pode variar entre 15 dias e três meses - clique aqui para ver.
"Viriato" foi preso e denunciado pelo Ministério Público por vadiagem em 1992. De acordo com a denúncia, ele trabalhava na rua como "lugar-tenente" do tráfico em Acari. A Justiça do Rio abriu processo contra ele. Ele recorreu pedindo o trancamento da ação penal ao Tribunal de Alçada Criminal do estado, que negou. O caso chegou ao Superior Tribunal de Justiça, que acabou decidindo pelo fim do processo em 1993 porque o réu "provou exercer atividade laborativa lícita". Na ocasião, ele afirmou que trabalhava no cais do porto.
Hoje, Hélio tem o respeito dos amigos. “É o comportamento dele que impôs isso. É uma pessoa alegre, afável, carinhosa com as crianças e os moleques. Merece respeito”, revelou um parceiro do futebol de Irajá, subúrbio do Rio, à reportagem, que acompanhou um jogo no último domingo (5).
Apesar da amizade, ele não escapa da gozação dos colegas de bola. “Quer sofrer, fica aí para assistir o Hélio jogar”, brinca um dos amigos, acompanhado da zoação dos demais, enquanto a dona do bar começa a servir tigelas de mocotó em meio a um esquentado bate-boca e troca de acusações sobre “entradas desleais”.
“Esses caras não sabem o que é entrada desleal. Eu, ainda moleque, trabalhando na feira, fui enquadrado por vadiagem, por falta de carteira assinada e outros documentos. O sargento me deixou horas de castigo no DPO (Destacamento de Policiamento Ostensivo) de Acari. Foi a maior humilhação, e só estimulou minha entrada no crime”, afirma.
Mas, ao se transformar em Virinha – apelido que ganhou por jogar bola de gude com habilidade e fazer uma elipse perfeita “virando” simultaneamente várias bolas do adversário – passou a se destacar na favela. Logo foi convidado para entrar no grupo dos “velhos” traficantes, que viam nele uma espécie de liderança.
“O Cy de Acari (Darcy da Silva Filho), que era o chefão na favela naquela época (década de 1980), dizia que eu era um garoto esperto e mandou eu fazer a contabilidade do tráfico. Não demorou muito e fui escolhido um dos homens fortes dele”, lembrando a formação de grupos armados que atuavam naquela região (Irajá, Acari, Fazenda Botafogo, Coelho Neto, Vigário Geral e Parada de Lucas). Cy foi assassinado em 1999.
Além de Cy, Viriato também conviveu com os criminosos mais procurados pela polícia, na época, Tonicão e Jorge Luís. “Botaram muita coisa na minha conta, também. Diziam que o Jorge Luís respondia a 66 processos. Em meu nome tinha mais de 30, a metade. Pô, quem era o chefe do tráfico era ele, não eu. Foi Deus que me livrou desse mundo do crime”, acredita, garantindo que já cumpriu a pena que lhe cabia na Justiça.
Viriato diz que deixou o crime quando um fornecedor de drogas e armas desistiu de fazer uma entrega no dia combinado, a pedido da mulher evangélica. Mas, mesmo sem a encomenda, o traficante fez o percurso acertado como se estivesse com o material.
“Foi abordado pela polícia, mas não estava com nada. Nós dois escapamos do flagrante. Para mim, isso é um livramento de Deus. Ele disse que foi graças às orações da mulher dele. Esse companheiro deixou o crime, a partir daquele dia, eu também, claro”, conta.
Vadiagem controversa - O juiz Fábio Aguiar Munhoz Soares, da 17ª Vara Criminal de São Paulo diz que os casos de processo por vadiagem eram comuns até a década de 70. Depois da promulgação da Constituição, em 1988, foram poucos os casos – entre eles, o de Viriato.
"A lei que contém a vadiagem é de 1941. É uma contravenção, como se fosse um crime menor. O legislador entendeu que alguns delitos de menor expressão deveriam ser considerados contravenção penal. De lá para cá o Brasil mudou, as coisas mudaram. Em algumas cidades do Brasil, a sua aplicação ainda pode ocorrer. Mas dificilmente será aplicada em cidades grandes, como São Paulo."
Para o magistrado, no entanto, é uma lei que não deve ser aplicada. "É mais fácil que o filho do pobre seja considerado vadio, porque fica ali na rua. O filho do rico, se não trabalhar, vive da renda do pai, faz outras coisas, não será considerado vadio, embora os dois tenham condições iguais para o trabalho. É totalmente inconstitucional."
O defensor público Gabriel Habib, da Defensoria Pública Federal no Rio de Janeiro, disse que a lei está em desuso porque traz conceitos que não são claros nem precisos. "O que é ociosidade? O que é subsistência? Geram dúvidas. Então a lei não caducou, mas está em desuso. Sobretudo em um país de miseráveis com tanto desemprego. Todo mundo sem emprego, renda, poderia ser condenado por ser vadio. Vadiagem não é contravenção. É um problema social. O próprio estado abandona o cidadão, depois quer punir por vadiagem?"
Em consulta ao site da Câmara dos Deputados, o G1 localizou ao menos quatro projetos de lei que revogam o artigo. No ano passado, o Congresso revogou o item que considerava a mendicância uma contravenção penal, mas não mexeu na punição à vadiagem.
Cidades que aplicam - Apesar das críticas dos juristas, o G1 localizou duas cidades brasileiras que dizem aplicar atualmente a lei da vadiagem.
Em Goioerê, uma cidade paranaense de 30 mil habitantes, o delegado local enquadrou oito pessoas por vadiagem neste ano. O escrivão da polícia local Mauro Lima contou ao G1 que a estratégia visa reduzir a criminalidade.
"Se alguém liga e avisa que tem pessoas em uma construção há duas horas consumindo drogas. A gente chega e não encontra nada. Pergunta se trabalha, se está desempregado ou procurando emprego. Autua o cidadão e leva para delegacia. Faz então um termo circunstanciado, mas como a pena não ultrapassa dois anos de prisão, ele é solto. Encaminhamos para a Justiça e já marcamos a primeira a audiência. Aí fica com o Ministério Público", explicou.
Mas o promotor da cidade paranaense, Thadeu Augimeri de Goés Lima, disse ao G1 que esse tipo de acusação não vira processo na cidade. "Eu entendo que essa contravenção não existe depois da Constituição de 1988. Contraria princípios do direito democrático. Ele penaliza, na verdade, um modo de ser e não de fazer." Para o promotor, se alguém estiver na rua trabalhando com tráfico de drogas, por exemplo, tem de ser penalizado no segundo aspecto.
"Eu não denuncio com base na lei da vadiagem. Quando os termos chegam no Juizado Especial Criminal, eu opino pelo arquivamento", destaca o promotor.
Em Assis, no interior de São Paulo, o delegado de polícia Luis Fernando Quinteiros de Souza causou polêmica quando decidiu aplicar a lei no ano passado. Ele explica, no entanto, que ninguém foi preso na cidade por vadiagem. "Essa operação, na realidade, foi para controlar e reduzir a criminalidade na cidade. Há muitas pessoas desocupadas, mas honestas. Mas gente que nunca procurou emprego? Procuramos verificar pessoas que sequer tinham procurado trabalho honesto."
Souza disse que as pessoas eram abordadas e orientadas sobre a necessidade de procurar trabalho honesto para não serem enquadradas na lei da vadiagem. "Foi mais um trabalho de marketing que deu resultado porque diminuiu a criminalidade na cidade. E continuamos com esse trabalho para restabelecer a ordem, que é chamado de 'Tolerância Zero'."
De acordo com o delegado de Assis, os policiais na cidade são orientados para continuar abordando eventuais "desocupados" pela lei da vadiagem. G1
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