Em outubro de 2007, o Brasil vibrou ao ser escolhido sede da Copa do Mundo de Futebol de 2014. Passaram-se quatro anos e nada há a comemorar. Infraestrutura de transportes precária, atraso em obras, estádios que só existem no papel (ou nem no papel). Passada mais da metade do prazo para preparação do país para o campeonato, o mesmo governo federal que tolerou a inércia propõe flexibilizar as regras para licitar obras públicas. Quer acelerar o procedimento – e, por consequência, as obras e compras.
Em estilo pouco ortodoxo, mas que se tornou usual no governo do PT, a Presidência fez o projeto chegar ao Legislativo enxertado em uma medida provisória sobre o trabalho de médicos residentes. Mistura alhos com bugalhos. Tudo para votar a proposta em poucos dias. Turbinada por um pedido de urgência, ela deve ir ao Plenário da Câmara dos Deputados nesta terça-feira.
Para além da condenável esperteza política, o documento traz elementos que, levados a um debate sério, representam uma evolução na forma como o governo compra e contrata. Traz também trechos que, para o bem da transparência e da moralidade, precisam ser vetados. Seja como for, especialistas ouvidos pelo site de VEJA são unânimes: o procedimento adotado para as licitações desses grandes eventos servirá de modelo para uma reforma na Lei de Licitações (8.666), de 1993. Melhor saber, portanto, do que se trata.
“É uma lei de licitações paralela, criada por medida provisória”, define o advogado Jonas Lima, especialista em licitações públicas. Marcio Pestana, professor de direito administrativo e público da Fundação Armando Álvares Penteado, identifica na proposta conceitos modernos, como a informatização e o encurtamento de prazos. “Ela tende a transcender o limite dos eventos esportivos, sendo usada como um aprimoramento da Lei de Licitações.”
A proposta do governo, apresentada por meio do parecer da deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), é criar o Regime Diferenciado de Contratações Públicas, válido para obras e compras públicas da Copa de 2014 e das Olimpíadas de 2016 (veja o projeto em detalhes no quadro abaixo).
Lupa na proposta - O primeiro ponto de honra é a criação da modalidade de contratação integrada, em que a empresa vencedora da licitação é responsável também por fazer o projeto básico da obra, algo atualmente a cargo do governo. O projeto básico consiste no detalhamento das características da construção, com estudos de viabilidade técnica e de impacto ambiental. Um custo e um esforço que o governo delega agora aos licitantes.
Para Jonas Lima, apesar de facilitar a vida do governo, a contratação integrada desestimula empresas a participarem da disputa, já que os candidatos terão de gastar com estudos e consultorias extras. “Com a participação na licitação mais onerosa, haverá menos licitantes e menos competitividade”, diz o advogado. “Além disso, não se licitam coisas desiguais. Cada concorrente apresentará um projeto de estádio ou de aeroporto. Os critérios de escolha serão subjetivos – o que cria uma bomba relógio de questionamentos judiciais.”
O segundo ponto de honra, visto como positivo pelos especialistas, é a criação de novos critérios de julgamento, além do menor preço. Pela proposta de lei, o vencedor pode ser também aquele que oferecer o maior desconto, a melhor combinação de técnica e preço, o maior lance ou o maior retorno econômico para os cofres públicos. A inovação, diz o professor de direito administrativo da Fundação Getúlio Vargas Carlos Ari Sundfeld, dá poder ao governo de fazer uma seleção mais subjetiva e, por isso, mais flexível.
“O preocupante é que a flexibilidade seja dada sem a criação de um sistema de fiscalização específico para essas contratações”, diz Sundfeld. Para o advogado, teria de ser criada, obrigatoriamente, uma comissão de fiscalização externa, que acompanhasse cada etapa do processo de licitação pelo regime diferenciado. A proposta sequer fala de fiscalização. “Pensou-se na celeridade, mas não se pensou no risco”, afirma Sundfeld.
Com os órgãos de fiscalização excluídos do processo, a tendência é uma desconfiança e um rigor ainda maior na análise das licitações. Resultado: mais paralisação de obras e mais atrasos. Por isso, apesar dos avanços, Sundfeld está cético quanto à eficácia do regime diferenciado para acelerar processos. “A proposta do governo revela uma visão do fiscal como inimigo.”
Perigoso sigilo – O artigo 17 da medida provisória esconde um perigoso artifício, que, se aprovado, resultará numa porta escancarada à corrupção. Ele prevê publicidade a todas as licitações, exceto àquelas em que a divulgação oferecer risco à segurança da sociedade e do estado. Ora, pode algo público ser sigiloso? A decisão do que é ou não questão de segurança ficará a cargo do gestor da licitação, de acordo com os critérios que ele bem entender.
“Nunca houve no regime de licitação brasileira esse tipo de ressalva”, diz Sundfeld. “A medida provisória presume que haja licitações passíveis de sigilo. E não há. Isso enseja a distorção do princípio da publicidade. O único motivo para se sonegar informações sobre uma licitação é esconder irregularidades.”
A proposta ressuscita ainda o sigilo sobre o orçamento previsto para a obra ou compra que se está licitando, derrubado pela Lei de Licitações em 1993. Na teoria, as empresas proporiam valores mais baixos por não terem um valor comum de referência. Na prática, é impossível evitar vazamentos.
“Sigilo do orçamento não tem utilidade nenhuma a não ser para a malandragem. O administrador da licitação conta para o amigo de quanto é o orçamento e planta informação falsa para o inimigo”, diz Sundfeld.
Armadilhas como essas provam que a proposta de Regime Diferenciado precisa ser examinada com lupa pelos parlamentares, sob o risco de instaurar no Brasil um sistema vulnerável à corrupção e aos desmandos do poder público. Há boas propostas – prazos mais curtos e desburocratização – mas há, como sempre, a tentativa de lucrar em cima de uma conquista de todos os brasileiros: o direito de sediar dois eventos de dimensão planetária. O mundo está de olho. FONTE: VEJA ONLINE
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